Uma das contribuições da Revolta do
Vinagre foi a divulgação das organizações sociais organizadas de forma
horizontal pela mídia tradicional para o grande público. O Movimento Passe
Livre (MPL) foi o primeiro que se destacou nas manifestações de junho de 2013,
devido à luta contra a redução da tarifa do ônibus, inicialmente na cidade de
São Paulo. Os famosos 20 centavos se tornaram a pauta principal de diversas
manifestações espalhadas pelo Brasil. O MPL
tem como princípio ser um movimento horizontal (sem hierarquia), autônomo,
independente e apartidário, mas não antipartidário. Com o aumento da violência
da polícia militar, outros grupos começaram a se destacar nos movimentos,
dentre eles a Mídia Ninja que se propõe a realizar “Narrativas Independentes,
Jornalismo e Ação”. É um coletivo cultural que se tornou mais
conhecido pelas transmissões ao vivo, através da Pós TV e da TwitCasting, das manifestações amplificadas
antes e durante a Copa
das Confederações da FIFA de 2013. A Pós TV e a Mídia Ninja são coletivos
culturais apoiados pelo Fora
do Eixo que organiza diversos eventos culturais pelo Brasil. Os coletivos
culturais, em geral, se definem como uma organização comunitária que conta com
o trabalho colaborativo para a democratização e integração de projetos
culturais, valorizando iniciativas locais, e usam as redes sociais da Internet
para a divulgação dos eventos culturais (notadamente, Facebook e Twitter).
A Mídia Ninja é um dos projetos associados ao Fora do Eixo que foca o
jornalismo independente, sendo um representante do movimento “Midialivrismo”. O
Fora do Eixo, aparentemente, cresceu tanto em número de projetos, pessoas
participando em grupos locais (“casas”), em público assistindo aos shows e em
dinheiro circulante que a organização horizontal está sob ameaça. A repercussão
da entrevista do representante do Fora do Eixo, Pablo Capilé, e do
representante da Mídia Ninja, Bruno Torturra, no programa de TV “Roda Viva”, no dia
5/08/2013, demonstra as diferenças de proposta dos dois coletivos
culturais. As denúncias sobre o Fora do Eixo depois desse programa estão
surgindo nas redes sociais, enquanto que a Mídia Ninja tenta se distanciar do
coletivo coordenado pelo Pablo Capilé. Ideias teóricas lindas podem ser tornar
um pesadelo na prática porque dependem de pessoas para serem realizadas. Dessa
forma, acredito que não existe nenhum modelo teórico perfeito (se existir
algum) que quando aplicado ao mundo real se torne imperfeito pelos mais
diversos motivos. Com base nesse axioma, não é saudável idolatrar, endeusar,
colocar alguém em um pedestal, ou seja, tornar alguém um modelo ideal de
conduta e exemplo de tudo de bom que você acredita. A idolatria a um modelo ou
ideologia aplicada também tem seus riscos porque ocorre a troca da visão
crítica pela crença cega sobre algum tema, ou fato, ou evidência. Historicamente,
todos conhecemos alguns eventos que mostram quão longe a crença cega pode
chegar, em geral, de forma destrutiva para a maior parte da população. Não quer
dizer que os modelos ideológicos teóricos não tenham elementos interessantes a
serem aproveitados. Eu acredito que a Metáfora
da Caixa de Bombom resume bem a ideia que todas as ideologias ou projetos
sociais tem algumas propostas interessantes e outras desinteressantes para cada
um de nós. Os coletivos culturais e as organizações horizontais não são modelos
perfeitos e, por isso, apresentam falhas, mas mostram a carência de
representação da maioria da população e a necessidade de participação de parte
dessa população, especialmente os jovens que precisam falar e demandam serem
ouvidos. Na minha opinião, essas carências alimentam a formação de coletivos
que atuam nas áreas culturais, ambientais e políticas, e que tendem a atuar
mais intensamente em outras, como científicas, educacionais. As redes sociais
amplificam a divulgação e participação desses coletivos, repercutindo e
influenciando nas decisões políticas e na opinião dos diferentes setores da
sociedade, retroalimentando os movimentos sociais. Nas redes sociais, a
organização é praticamente horizontal, onde cada usuário tem sua voz, sua
chance de expor suas opiniões e ser ouvido por um número maior de pessoas do
que seus amigos ou seguidores. Algumas opiniões podem ser tornar virais, se
espalhando como ampla e rapidamente, dependendo de como se dá a repercussão da
publicação e outros fatores, de forma quase imprevisível. Esse meio de
dispersão de informações altera a determinação de quem são os formadores de
opinião. A maior participação abre o debate para diversos temas. Algumas
pessoas se tornam líderes rapidamente com diversos seguidores e amigos, que
ouvem suas opiniões. De certa forma, aumenta o poder de mais pessoas, podendo
ser um fortalecimento da democracia e da participação política no Brasil, pelo
menos para aqueles que tem acesso às redes sociais. O acesso vem aumentando
muito com os celulares com Internet. O aumento de participação e a necessidade
de ser ouvido acarretam a busca por soluções de problemas coletivos nas escalas
local, regional, nacional, continental e mundial. Em oposição a essa evolução
acelerada da comunicação e do acesso à informação estão os modelos tradicionais
de política, de cultura e dos demais setores da sociedade, que apresentam um
ritmo mais lento de resposta, de ação e de mudança (mesmo com vontade política)
porque as estruturas de organização política, econômica e social são
burocráticas, hierarquizadas e pouco eficientes. O contraste entre o mundo
virtual e o mundo institucional é tão grande que o conflito era inevitável. A
Revolta do Vinagre se diversificou em diversos movimentos que demonstram as
insatisfações de vários setores da sociedade. As respostas dos setores do
governo municipal, estadual e federal sobre as manifestações foram distintas:
confronto e opressão x controle com diálogo. Espero que a pressão das massas
nas ruas e nas redes sociais continue modificando as atitudes dos setores do
governo, e que essas mudanças de atitude mostrem para mais pessoas que a
pressão funciona para melhor o funcionamento do Estado e a qualidade de vida de
toda a população. Só assim, essa pressão vai continuar até as eleições e gere
representantes mais conscientes da força da voz do povo amplificada pela
Internet. Outro resultado que espero da Revolta do Vinagre é o aumento de ações
locais independentes do governo, de ONGs e de empresas; com impactos nos mais
esquecidos recantos do Brasil. Se cada um dos cidadãos brasileiros tomarem
ciência da força que tem quando organizados em pequenos grupos organizados em
rede e horizontalmente (divisão do trabalho mais igualitária) e que para
conseguirem o que necessitam devem sair da passividade usual, quando se espera
a ajuda de alguém (governo, empresa, ONG), o Brasil muda completamente. Não
tenho a visão liberal, onde quem não busca o sucesso é um perdedor, e os
perdedores não merecem ajuda. Prefiro a visão social-democrata (no sentido da
Alemanha), quando todo cidadão deve ter o direito de uma vida digna (educação,
saúde, alimentação, infraestrutura básicos), e essa garantia é dada pelo
governo. Com o básico, qualquer cidadão tem as mesmas chances de escolher o
estilo de vida que deseja, com a justiça regulando os excessos. As organizações
coletivas locais são uma das formas de construir um mundo melhor ao seu redor
com as próprias mãos. Quanto mais passivo, mais esquecido você se torna. Quanto
mais ativo, quanto mais organizado em rede, maior é o impacto e mais alto,
claro e distante você será ouvido. Para isso acontecer, o governo deve escutar
e dialogar com os coletivos para executar as ações para atingir as condições
básicas de vida digna. As empresas devem ter maior participação nas atividades
realizadas pelos coletivos, as viabilizando economicamente. As informações de
todos os setores devem ser transparentes para que a confiança no funcionamento
da rede cresça e se mantenha estável. Todo trabalho em colaboração depende de
confiança, dessa forma, nos sistemas horizontais quando a confiança é quebrada,
a tendência é a falência do coletivo. Quanto mais numerosos forem os coletivos,
menos centralizados (com mais nós, muitos núcleos) forem, menos hierarquizados
e dependentes de poucas pessoas tendem a ser, e assim, mais democráticos e
socialmente justos serão. O novo mundo das organizações horizontais está posto
e espero que seja mais equilibrado social, econômica e ambientalmente.
Agência FAPESP (19/7/2010, Por Fábio de Castro) – A revisão do Código Florestal brasileiro, em votação no Congresso Nacional, está provocando sérias preocupações na comunidade científica e suscitando diversas manifestações no Brasil e no exterior.
Com uma possível aprovação do relatório que propõe mudanças na legislação ambiental, o Brasil estaria “arriscado a sofrer seu mais grave retrocesso ambiental em meio século, com consequências críticas e irreversíveis que irão além das fronteiras do país”, segundo carta redigida por pesquisadores ligados ao Programa Biota-FAPESP e publicada na sexta-feira (16/7), na revista Science.
O texto é assinado por Jean Paul Metzger, do Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo (USP), Thomas Lewinsohn, do Departamento de Biologia Animal da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Luciano Verdade e Luiz Antonio Martinelli, do Centro de Energia Nuclear na Agricultura (Cena), da USP, Ricardo Ribeiro Rodrigues, do Departamento de Ciências Biológicas da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq) da USP, e Carlos Alfredo Joly, do Instituto de Biologia da Unicamp.
As novas regras, segundo eles, reduzirão a restauração obrigatória de vegetação nativa ilegalmente desmatada desde 1965. Com isso, “as emissões de dióxido de carbono poderão aumentar substancialmente” e, a partir de simples análises da relação espécies-área, é possível prever “a extinção de mais de 100 mil espécies, uma perda massiva que invalidará qualquer comprometimento com a conservação da biodiversidade”.
A comunidade científica, de acordo com o texto, foi “amplamente ignorada durante a elaboração” do relatório de revisão do Código Florestal. A mesma crítica foi apresentada em carta enviada por duas das principais instituições científicas do país, no dia 25 de junho, à Comissão Especial do Código Florestal Brasileiro na Câmara dos Deputados.
Assinada por Jacob Palis e Marco Antonio Raupp, respectivamente presidentes da Academia Brasileira de Ciências (ABC) e da Sociedade Brasileira pelo Progresso da Ciência (SBPC), a carta defende que o Código Florestal, embora passível de aperfeiçoamentos, é a “peça fundamental de uma legislação ambiental reconhecida com uma das mais modernas do mundo”.
A reformulação do código, segundo o texto, baseia-se na “premissa errônea de que não há mais área disponível para expansão da agricultura brasileira” e “não foi feita sob a égide de uma sólida base científica, pelo contrário, a maioria da comunidade científica não foi sequer consultada e a reformulação foi pautada muito mais em interesses unilaterais de determinados setores econômicos”.
Entre as consequências de uma aprovação da proposta de reformulação, a carta menciona um “aumento considerável na substituição de áreas naturais por áreas agrícolas em locais extremamente sensíveis”, a “aceleração da ocupação de áreas de risco em inúmeras cidades brasileiras”, o estímulo à “impunidade devido a ampla anistia proposta àqueles que cometeram crimes ambientais até passado recente”, um “decréscimo acentuado da biodiversidade, o aumento das emissões de carbono para a atmosfera” e o “aumento das perdas de solo por erosão com consequente assoreamento de corpos hídricos”.
No dia 16 de junho, as lideranças da Câmara dos Deputados também receberam carta do geógrafo e ambientalista Aziz Nacib Ab’Sáber – professor emérito da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP e pesquisador do Instituto de Estudos Avançados (IEA) da USP –, que fez duras críticas ao relatório de reformulação da legislação.
Reconhecido como um dos principais conhecedores do bioma amazônico, Ab’Sáber defendeu que, “se houvesse um movimento para aprimorar o atual Código Florestal, teria que envolver o sentido mais amplo de um Código de Biodiversidades, levando em conta o complexo mosaico vegetacional de nosso território”. Segundo o geógrafo, a proposta foi apresentada anteriormente ao Governo Federal, mas a resposta era de que se tratava de “uma ideia boa mas complexa e inoportuna”.
No documento, Ab’Sáber afirma que “as novas exigências do Código Florestal proposto têm um caráter de liberação excessiva e abusiva”. Segundo ele, “enquanto o mundo inteiro repugna para a diminuição radical de emissão de CO2, o projeto de reforma proposto na Câmara Federal de revisão do Código Florestal defende um processo que significará uma onda de desmatamento e emissões incontroláveis de gás carbônico”.
Mudanças para pior
De acordo com Joly, que é coordenador do Biota-FAPESP, caso a reformulação seja aprovada, o Código Florestal mudará para pior em vários aspectos. “Essas manifestações da comunidade científica vão continuar, porque a situação é muito grave. Se essas mudanças forem aprovadas teremos um retrocesso de meio século na nossa legislação ambiental, com consequências profundamente negativas em diversas dimensões”, disse à Agência FAPESP.
Segundo ele, as mudanças terão impacto negativo sobre a conformação das Áreas de Proteção Permanente (APP) e Reservas Legais (RL) e sobre o funcionamento da regularização de propriedades em situação ilegal. Atualmente, explica, os proprietários que não possuem RL ou APPs preservadas estão sujeitos a multas caso se recusem a recuperar as áreas degradadas, ou quando realizarem desmatamento ilegal. Nessas condições, podem até mesmo ter sua produção embargada.
“Mas se a proposta de mudança for aprovada, os Estados terão cinco anos, após a aprovação da lei, para criar programas de regularização. Nesse período ninguém poderá ser multado e as multas já aplicadas serão suspensas. Aqueles que aderirem à regularização poderão ser dispensados definitivamente do pagamento de multas. Ficarão livres também da obrigação de recuperar as áreas ilegalmente desmatadas”, explicou.
Em relação às APPs, a legislação atual protege no mínimo 30 metros de extensão a partir das margens de rios, encostas íngremes, topos de morros e restingas. Quem desmatou é obrigado a recompor as matas.
Se a nova proposta for aprovada, a faixa mínima de proteção nas beiras de rios será reduzida a 15 metros. Topos de morro e áreas acima de 1.800 metros deixam de ser protegidas. As demais áreas, mesmo formalmente protegidas, poderão ser ocupadas por plantações, pastagens ou construções, caso tenham sido desmatadas até 2008 e forem consideradas “áreas consolidadas”.
“As principais candidatas a se tornar áreas consolidadas são justamente as áreas irregularmente ocupadas, que sofrem com enchentes, deslizamentos, assoreamento e seca de rios. Como não haverá recuperação e as ocupações permanecerão, essas áreas serão condenadas a conviver eternamente com esses problemas, perpetuando tragédias como as de Angra dos Reis, do Vale do Itajaí e Alagoas”, disse Joly.
No que diz respeito à RL, a lei atual impõe um mínimo de vegetação nativa em todas as propriedades: de 20% do tamanho dos imóveis situados em áreas de Mata Atlântica, Cerrado, Caatinga, Pantanal e Pampas e, na Amazônia Legal, 35% nas áreas de Cerrado e 80% nas de floresta. Quem não tem a área preservada precisa recuperar espécies nativas ou compensar a falta de reserva no imóvel com o arrendamento de outra área preservada situada na mesma bacia hidrográfica.
Com a nova proposta, as propriedades com até quatro módulos fiscais (20 a 440 hectares, dependendo da região do país) não precisam recuperar a área caso o desmatamento tenha ocorrido até a promulgação da lei. Nas demais propriedades será preciso recuperar a vegetação, mas o cálculo não será feito com base na área total do imóvel: a base de cálculo é a área que exceder quatro módulos fiscais.
Além disso, as compensações poderão ser feitas com áreas situadas a milhares de quilômetros da propriedade, desde que no mesmo bioma. O proprietário terá também a opção de fazer a compensação em dinheiro, com doação a um fundo para regularização de unidades de conservação.
“Como mais de 90% dos imóveis rurais têm até quatro módulos fiscais, boa parte deles concentrados no Sul e Sudeste, haverá grandes áreas do país em que simplesmente não haverá mais vegetação nativa, pois são essas áreas também que abrigam o maior número de APPs com ocupação ‘consolidada’. Há ainda um grande risco de que propriedades maiores sejam artificialmente divididas nos cartórios para serem isentas da obrigação de recuperação – algo que já está ocorrendo”, destacou Joly.
A proposta de reformulação proíbe a fragmentação das propriedades. Mas, segundo Joly, a fiscalização e coibição é extremamente difícil e, por isso, a anistia não ficará restrita às pequenas propriedades. “Os poucos que forem obrigados a recompor áreas desmatadas poderão fazer isso com espécies exóticas em até metade da propriedade, ou optar por arrendar terras baratas em locais distantes, dificultando a fiscalização”, disse.
Desproteção e impacto nas águas
Ricardo Ribeiro Rodrigues, que coordenou o programa Biota-FAPESP de 2004 a 2008, criticou o principal argumento para a defesa da reforma do Código Florestal: a alegação de que não existe mais área disponível para expansão da agricultura brasileira.
“O principal erro desse código novo é que ele não considera as áreas que foram disponibilizadas para a agricultura historicamente, mas que são de baixa aptidão agrícola e por isso são subutilizadas hoje, sem papel ambiental e com baixo rendimento econômico, como os pastos em alta declividade”, afirmou.
Segundo ele, o entorno das rodovias Dutra e D. Pedro, na região da Serra da Mantiqueira e Serra do Mar, são exemplos de áreas de uso agrícola inadequado que poderiam ser revertidas para florestas nativas, para compensação de RL de fazendas com elevada aptidão agrícola. “Se isso não for feito, essas áreas continuarão sendo mal utilizadas. Podemos encontrar exemplos semelhantes em todo o território brasileiro”, disse.
Outro impacto negativo da proposta de modificação do Código para a restauração, segundo Rodrigues, é a anistia proposta para as APPs irregulares. “Quem degradou as APPs não vai precisar recuperar e, pior, poderá continuar usando a área desmatada. Quem preservou vai ser punido”, explicou.
Segundo ele, um inventário produzido pelo Biota-FAPESP este ano mostra que mais de 70% dos remanescentes florestais no Brasil estão fora das Unidades de Conservação e se localizam em propriedades privadas. “Se não tivermos mecanismos legais para a conservação dessas áreas – como a RL e APP do código atual – elas vão ser degradadas depois da moratória de cinco anos determinada na proposta de alteração do Código”, afirmou.
A reformulação do Código Florestal deverá diminuir a eficiência dos mecanismos legais de proteção ambiental. Uma das consequências mais graves será o impacto na qualidade da água. De acordo com José Galizia Tundisi, do Instituto Internacional de Ecologia, de São Carlos (SP), com o solo mais exposto, haverá um aumento da erosão e do assoreamento de corpos d’água, além da contaminação de rios com fertilizantes e agrotóxicos.
“A preservação de mosaicos de vegetação, florestas ripárias – ou matas ciliares – e de áreas alagadas é fundamental para a manutenção da qualidade da água de rios, lagos e represas. Essa vegetação garante a capacidade dos sistemas para regular o transporte de nutrientes e o escoamento de metais e poluentes. Esses processos atingem tanto as águas superficiais como as subterrâneas”, disse à Agência FAPESP.
O processo de recarga dos aquíferos, segundo Tundisi, também depende muito da cobertura vegetal. A vegetação retém a água que, posteriormente, é absorvida pelos corpos d’água subterrâneos. Com o desmatamento, essa água escoa e os aquíferos secam.
Tundisi criticou também a diminuição da delimitação das áreas preservadas em torno de rios. “Essa delimitação de faixas marginais é sempre artificial, seja qual for a metragem. Não é possível estabelecer de forma geral uma área de preservação de 15 metros dos dois lados do leito dos rios. Seria preciso delimitar caso a caso, porque a necessidade de preservação varia de acordo com a ecologia do entorno e os padrões de inundação do sistema. A delimitação deve ter caráter ecológico e não se basear em metragens”, ressaltou.
A modificação na legislação, para Tundisi, vai na contramão das necessidades de preservação ambiental. “Seria preciso preservar o máximo possível as bacias hidrográficas. Mas o projeto prevê até mesmo o cultivo em várzeas, o que é um desastre completo. Enquanto existem movimentos mundiais para a preservação de várzeas, nós corremos o risco de ir na contramão”, afirmou.
Para Tundisi, com o impacto que provocará nos corpos d’água, a aprovação da modificação no Código Florestal prejudicará gravemente o próprio agronegócio. “Se não mantivermos as áreas de proteção, a qualidade da água será afetada e não haverá disponibildade de recursos hídricos para o agronegócio. Fazer um projeto de expansão do agronegócio às custas da biodiversidade é uma atitude suicida”, disse.
A agricultura deverá ser prejudicada também com o aumento do preço da água. “Trata-se de algo cientificamente consolidado: o custo do tratamento da água aumenta à medida que diminui a proteção aos mananciais”, disse o cientista.
Argumentação desmontada
Luiz Antonio Martinelli, pesquisador do Cena-USP e professor convidado da Universidade de Stanford, afirma que o Código Florestal, criado em 1965, de fato tem pontos que necessitam de revisão, em especial no que diz respeito aos pequenos agricultores, cujas propriedades eventualmente são pequenas demais para comportar a presença das APPs e a RL.
“Mas, qualquer que seja a reformulação, ela deve ter uma base científica sólida. Essa foi a grande falha da modificação proposta, que teve o objetivo político específico de destruir ‘empecilhos’ ambientais à expansão da fronteira agrícola a qualquer custo”, disse Martinelli.
Segundo ele, o argumento central da proposta de reformulação foi construído a partir de um “relatório cientificamente incorreto encomendado diretamente pelo Ministério da Agricultura a um pesquisador ligado a uma instituição brasileira de pesquisa”.
“O relatório concluía que não haveria área suficiente para a expansão agrícola no país, caso a legislação ambiental vigente fosse cumprida ao pé da letra. O documento, no entanto, foi produzido de forma tão errônea que alguns pesquisadores envolvidos em sua elaboração se negaram a assiná-lo”, apontou.
O principal argumento para as reformas, segundo o pesquisador, baseia-se na alegação de que há um estrangulamento da expansão de terras agrícolas, supostamente bloqueado pelas APPs e RL. Para os proponentes da mudança, esses mecanismos de proteção ambiental tornam a legislação atual excessivamente rigorosa, bloqueando o avanço do agronegócio. Esse bloqueio, no entanto, não existe, afirma. “A falácia desse argumento foi cientificamente desmontada.”
Martinelli cita estudo coordenado por Gerd Sparovek, pesquisador da Esalq-USP, que usou sensoriamento remoto para concluir que a área cultivada no Brasil poderá ser praticamente dobrada se as áreas hoje ocupadas com pecuária de baixa produtividade forem realocadas para o cultivo agrícola.
“Melhorando a eficiência da pecuária em outras áreas por meio de técnicas já conhecidas, não há qualquer necessidade de avançar sobre a vegetação natural protegida pelo Código Florestal atual”, disse.
As pastagens ocupam hoje, segundo Martinelli, cerca de 200 milhões de hectares, com aproximadamente 190 milhões de cabeças de gado. “Caso dobremos a lotação de uma para duas cabeças de gado, liberamos cerca de 100 milhões de hectares. A área ocupada pelas três maiores culturas – soja, milho e cana – cobrem uma área aproximada de 45 milhões de hectares. Portanto, com medidas simples de manejo poderemos devolver para a agricultura uma área equivalente ao dobro ocupado pelas três maiores culturas brasileiras”, afirmou.
A operação não seria tão simples, segundo o pesquisador, já que envolve questões de preço da terra e mercado agrícola, por exemplo. Mas a aproximação dá uma ideia de como é possível gerar terras agriculturáveis sem derrubar nenhuma árvore.
Para o pesquisador do Cena-USP, a maior parte das reformulações propostas tem o único propósito de aumentar a área agrícola a baixo custo. “O mais paradoxal é que as mudanças beneficiam muito mais os proprietários de grandes extensões de terra do que pequenos produtores”, disse.
Martinelli afirmou ainda que não acredita que as mudanças no Código Florestal possam beneficiar o desenvolvimento da produção de alimentos no Brasil. Segundo ele, se houvesse preocupação real com a produção de alimentos, o governo deveria ampliar e facilitar o crédito ao pequenos produtores, investir em infraestrutura – como estradas e armazenamento – para auxiliar o escoamento desses produtos e, principalmente, investir maciçamente em pesquisas que beneficiassem essas culturas visando a aumentar sua produtividade.
“Quem sabe com um aumento considerável na produtividade pequenos agricultores pudessem manter suas áreas de preservação permanente e suas áreas de reserva legal, gerando vários serviços ambientais que são fundamentais para a agricultura”, disse.
Novos debates
No dia 7 de julho, a SBPC reuniu em sua sede em São Paulo um grupo de cientistas ligados à temática do meio ambiente para iniciar uma análise aprofundada sobre o assunto, do ponto de vista econômico, ambiental e científico.
O evento teve a participação de Raupp, Ab’Sáber, Joly, Martinelli, Rodrigues, além de Ladislau Skorupa, da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), Carlos Afonso Nobre, do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), e João de Deus Medeiros, do Ministério do Meio Ambiente (MMA).
Os cientistas formaram um grupo de trabalho para emitir pareceres sobre as mudanças do Código Florestal. Na Reunião Anual da SBPC, que será realizada em Natal (RN) entre 25 e 30 de julho, uma mesa-redonda discutirá o tema.
Outra reunião, prevista para a segunda quinzena de agosto, deverá sistematizar todas as sugestões do grupo em um documento a ser divulgado nos meios de comunicação e encaminhado aos congressistas.
No dia 3 de agosto, o programa BIOTA-FAPESP realizará o evento técnico-científico "Impactos potenciais das alterações do Código Florestal Brasileiro na biodiversidade e nos serviços ecossistêmicos". Na oportunidade, especialistas farão uma avaliação dos possíveis impactos que as alterações do Código terão sobre grupos taxonômicos específicos (vertebrados e alguns grupos de invertebrados), bem como em termos de formações (Mata Atlântica e Cerrado) e de serviços ecossistêmicos (como ciclos biogeoquímicos e manutenção de populações de polinizadores). Além de reforçar a base cientifica sobre a importância das APP e de RL para conservação da biodiversidade, o evento visa a subsidiar a ABC e a SBPC no posicionamento sobre essa temática.